terça-feira, 19 de junho de 2012

DE SONHOS E CRIAÇÕES...

Lua Nova, 19 de Junho de 2012


O meu subconsciente tem as maneiras mais esquisitas de associar informação e transformá-la em sonhos. Muitas vezes são coisas sem sentido, mas percebo (ou acho que sim) cada pormenor inserido.
No entanto, há um que nunca percebi.
Dizem que o cérebro tem a capacidade de recordar milhares de caras. Mesmo que não o saibas conscientemente, caras desconhecidas que tomam lugar nos teus sonhos pertencem a pessoas que provavelmente viste uma única vez há anos atrás. Dizem que sim...
Eu normalmente sonho com caras conhecidas e as desconhecidas costumam estar cheias de sombras, nunca bem definidas... O que tem a sua lógica, para mim pelo menos.


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No outro dia sonhei que estava no meio de uma rua. Pessoas passavam por mim como se tudo estivesse normal, como se fosse normal as pessoas andarem por aí com asas a saírem-lhes das costas.
Talvez seja normal. Olhei em volta e apercebi-me de que elas não faziam a mínima ideia de que tinham asas. As asas eram todas diferentes... Cores diferentes, tamanhos diferentes, aspectos diferentes. Neat! Lembrei-me de olhar para o meu reflexo na montra de uma loja, curiosa para ver como seriam as minhas, mas o entusiasmo acabou rapidamente: as minhas costas estavam normais.
Pus-me a andar, para ver até onde é que a rua ia dar. O tamanho das asas dela não é o «correcto»! Mal tinha dado por isso, vi que a rapariga não era a única com uma envergadura desproporcional ao corpo. Nem todas eram bonitas. Na verdade, algumas pareciam bastante mal tratadas. Com pena, lembrei-me do meu reflexo... Tão vazio.
Vazio. Dei por mim e a rua esvaziou. Ninguém estava ali para além de mim. Continua. Também não há aqui nada, mais vale continuares. Segui a rua. Quanto mais andava, menos havia. Os edifícios diminuíam em tamanho e em número até que fui dar a um armário. Bem... Não é um simples armário. Todo requintado. Ébano(?) com pedras de diferentes cores a reluzir. Madeira retalhada. E fechado à chave. Seriously? Parece que o objectivo deste sonho é deixar-me frustrada... Bem com uma fechadura assim, a chave devia ser uma maravilha e, por isso, fácil de encontrar. Devia, não devia? À excepção de este sítio estar vazio. Andei à volta daquele móvel misterioso à procura de um sítio onde pudessem esconder a chave, mas quando olhei por baixo reparei num par de sapatos que estava do outro lado.
Esqueci a chave e fui ver quem estava detrás do armário. "Tu?"
"Precisas de ajuda?"

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Há um rapaz que não conheço. Claro, que deve ser uma das caras desconhecidas? Mas então, porque é que é o único que consigo ver claramente? Porque é que é o único que não faz aquilo que quero?
Em todos os sonhos, eu sou capaz de controlar o que acontece. Se já tive aquele sonho, posso facilmente alterá-lo ou então pará-lo por completo e escolher outro. Consigo controlar facilmente as acções de todos com quem sonho, se me apetecer... Se não, agem apenas como eu esperaria que agissem, como lhes é normal.
Mas ele não.

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Voltei para a frente do armário. Desaparece. Ele surgiu atrás de mim em poucos segundos.
Fechei os olhos e massajei a cabeça. Desaparece, desaparece, desaparece.
"Está tudo bem?"
Suspirei. Não valia a pena. "Kind of. Não encontro a chave para abrir o armário."
Arranjou os óculos e apontou para mim. "Como a que tens ao pescoço?"
"Eu não--" You can kill me now. "Sim. Obrigada." Devia estar vermelha até às orelhas... Mesmo assim virei-me para ele. Tinha que lhe perguntar sobre uma coisa que me estava a chatear. "Porque é que estás a usar óculos?"
"Eu uso óculos."
"Da última vez que te vi, não tinhas."
"Estava com lentes." Sorriu.
Eu não estava a sorrir. Virei-me para a porta, tirei a chave de volta do pescoço e comecei a abrir o armário. Ao menos tinha razão numa coisa: a chave era linda. Quando a abri a porta a única coisa que lá estava era um espelho.
"Para que querias abrir o armário?" Ele tinha-se aproximado e estava mesmo atrás de mim. "O que é que está lá dentro?"
"Não te apoies na minha cabeça!" Impressão minha ou ele estava a divertir-se imenso? "E o que é que te interessa? Não tens nada para fazer?"
Afastou-se um bocado e subiu as mãos numa posição defensiva. "Não te preocupes comigo."

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Quando o vi pela primeira vez estava numa espécie de laboratório de investigação. Nada de Química ou parecido... Investigação das minhas memórias. Era literalmente «a walk down the memory lane»! Objectos, fotografias, nuvens com a memória a decorrer infinitamente e pessoas que fui conhecendo ao longo dos anos. À medida que ia passando por elas tirava-as da sua prisão de vidro, o que não foi lá muito brilhante... Começaram a soar alarmes por todo o lado e segundo uma voz robótica, dentro de pouco tempo haveria guardas atrás de nós.
Comecei a correr com o grupo que tinha libertado. Corredor, atrás de corredor: tudo parecia igual.
Depois passei por uma sala em que ainda não tinha estado e, no meio de várias fotos que nunca cheguei a ver, estava um rapaz. Um pouco mais alto do que eu, olhos castanho escuro, cabelo curto, ruivo acobreado e ondulado. Tinha um casaco de capuz, calças de ganga e ténis, com as calças para dentro. Ele estava a ver uma daquelas nuvenzinhas... As sirenes não pareciam incomodá-lo. Tinha que o avisar. "Err... Olha! É melhor saíres daqui."
Ele voltou-se. "Hum? Ah! Não te preocupes comigo." E sorriu.
Eu decidi que era melhor ir-me embora.

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Olhei para o espelho a tentar perceber o que fazer a seguir.
"Ei, estás mais baixa!" Constatou ele divertido.
Não me dei ao trabalho de desviar o olhar. Conseguia ver o reflexo dele no espelho. "Não. Tu é que estás mais alto." Ele estava mais alto, com o cabelo um pouco mais escuro (mas mantendo o ruivo) e mais desalinhado, sardas visíveis na zona do nariz. Já passaram alguns anos... Voltei-me para ele. Estava de novo com calças de ganga, mas desta vez tinha um hoodie e estava-- "Descalço?"
Ele olhou para os pés e de novo para mim. "Bem, não é que sapatos façam muita falta aqui... Já para não falar que é muito mais confortável!"
"Suit yourself!" Sorri. "Se quiseres ver..." Dei-lhe espaço para se aproximar.
Ele veio imediatamente para o meu lado. "É só um espelho." Disse decepcionado.
Era a minha vez de rir. "Brilhante dedução!" Ele olhou para mim e foi-se embora para o lugar onde estava antes e sentou-se no chão. "Não me digas que vais amuar?"
"Claro que não." Disse. "Apenas não tem muita piada..."
"Bem, isto é um sonho. Logo não pode ser só um espelho." Isto pareceu interessá-lo.
"Achas?" Levantou-se. "Então o que é que faz?"
Sorri. "Não sei! Assim podemos descobrir, não é divertido?"
"Podemos?" Questionou, com os óculos à ponta do nariz.
"Se quiseres." Afastei-me do armário e fui mais para perto dele, para poder ver o espelho todo. Ficámos  a olhar para os nossos reflexos, como se a resposta aparecesse. Foi quando reparei nelas. "Asas!" Conseguia ver asas quase invisíveis nas minhas costas. Já me tinha esquecido.
"Asas?"
"Sim. Há bocado toda a gente tinha asas, menos eu." Olhei para ele. "Tu também não tens..."
"Estão escondidas."
"Hum? Como, porquê esconder as asas?"
"Também tens as tuas escondidas" Disse ele enquanto coçava a cabeça.
"Como é que sabes isso?" Estava completamente confusa.
Riu-se nervosamente. "Bem... Tu sabes. Lembra-te das asas que pertenciam a cada pessoa."
Sim, fiz isso há algum tempo. Mas revi na mesma e apercebi-me de uma coisa.
"As asas representam a maneira como vês cada pessoa." Concluiu ele.
"Então porque não vejo as minhas?" O meu reflexo dava para perceber um pouco de como seriam, mas gostava que elas fossem mais materiais.
"Porque achas?" De repente, tinha ficado muito sério. "Elas existem, mas estão sempre escondidas... Até tu ficas com dúvidas que existam."
Não estou a gostar do rumo disto. "Então e tu? Porque não vejo as tuas? Nem sequer sei quem és!"
Ele calou-se.
"Como te chamas?"
Continuou sem responder.
Pensei em acabar ali mesmo com o sonho. Mas, não queria desistir assim. Não sem saber mais alguma coisa.
"Não me conheceste." Foi a resposta dele. "Não fazes ideia de quem sou... Por isso é que não vês asas."
"Não te conheci? Então isso quer dizer que és uma criação da minha imaginação?"
Sorriu. "O passado, o presente e o futuro... Faz tudo parte da ilusão do tempo."
Tive de me deixar rir. Eternalismo. Teoria da relatividade. Física. Há algum tempo que não me lembrava disto... Tenho de lhe perguntar o quanto ele viu das minhas memórias naquele laboratório. "A Física Quântica não te assenta, «Einstein»..." Ele riu-se comigo, da alcunha. "Então estás a dizer que fazes parte do futuro? Que ainda te vou conhecer?"
"Talvez."
"Talvez..." Olhei de novo para o espelho. "Então e o teu nome?"
"Se te dissesse, tudo isto perderia a sua piada... No entanto, se quiseres, Einstein é um belo nome!"
Voltei-me outra vez para ele. "Sabes muito, sabes. Nem penses que te chamo isso." Até à próxima vez já terei arranjado um nome... Apercebi-me que tudo se estava a tornar difuso e a desvanecer. Estava a acordar.
"Parece que teremos de esperar pela próxima." Disse ele, com o que parecia alguma tristeza nos olhos.
"Não fiques assim. Se achas mesmo que o tempo é uma ilusão, a próxima vez já está a acontecer." Mas, na verdade, não sei quanto tempo será.

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Pareceu-me ainda o ouvir, mas quando dei por mim, já estava acordada. Tudo isto era apenas mais uma memória para a colecção.